22.9.11

ponte, bridge, bruck, bruge, brygga, brydze

E ali estava. No meio de uma tempestade em directo. Por pudor, tirou o som ao aparelho. Ficou a ver-se. Não percebeu imediatamente que era um erro. Mas o mais importante no erro - ah, pois -, é a verdade. Cada vez que desviava o olhar, podia pensar. Enquanto olhava directamente para si, no meio da tempestade, só podia sentir. E sentia um tremendo desamparo. O desamparo parece sempre que não vem de lado nenhum, mas vem. O desamparo tinha vindo colado ao impacto. Tinha sido brutal. Mais tarde, já o sabia, viria a compaixão. Era preciso prevenir a compaixão. Não fora possível prevenir o impacto nem o desamparo, mas era possível prevenir a compaixão. Era preciso desviar o olhar. Custasse o que custasse, pensou. Custasse o que custasse. Foi nessa sequência de acontecimentos mentais que suprimiu o som. Agora podia pensar. O som torna o olhar contagiante. Se era preciso suprimir o som, que se suprimisse o som, zás, muet, mute, muto, stumm. Sem som podia desviar o olhar. E desviando o olhar, podia pensar. Passou a noite nisto. Aquela noite.

Tinha os olhos um bocado inflamados por causa do raio da tempestade. Teve de chorar para aliviar a inflamação dos olhos. Chorou de olhos abertos e de olhos fechados. Mas a noite não foi passada a chorar. A noite foi passada no meio da tempestade. É bom que o que aconteceu seja contado como aconteceu. Umas vezes sentia, outras pensava. E tanto precisou de chorar por causa de sentir, como por causa de pensar. Não é novidade para ninguém, as lágrimas tanto chegam duma maneira como doutra. São assim os olhos debaixo das tempestades. Sturm, storm, szturm. Foi anotando mentalmente as conclusões. Escrevê-las-ia mais tarde. Sim, a tempestade havia de passar. E quando passasse, e passou, passará, passaria a forma de letra o que tinha passado. Porém, ainda hesitou. Talvez fosse melhor não tolerar esse género de conclusões. Tolerância zero como uma operação policial. Destruí-las-ia como provas obtidas sem autorização. Estavam contaminadas pelo Sentimento. Mas desde quando a memória é um sentimento? Socorreu-se de várias fontes, documentou-se. E descobriu, por exemplo, que em alemão pensar se diz denken e lembrar gedenken, e remomorar, eingedenker, e recordação andenken. Não, a memória não é um sentimento.

Quando passou a letra o que pensou durante a tempestade, escreveu no início do primeiro parágrafo, Da mesma forma que as pontes não podem ser estruturas rígidas, a clareza precisa de sombras. E continuava, A ausência de sombras retira-nos um ponto de abrigo. Um ponto de abrigo é um sítio onde se pode pousar as mãos sobre os joelhos flectidos, inclinar a cabeça e, por um momento, fechar os olhos. E mais adiante, O excesso de clareza assemelha-se a um jogo de squash. Deixa-nos exaustos. No segundo parágrafo, o assunto era retomado, O excesso de clareza impede qualquer possibilidade de ajustamento se, por acaso, ou sem ser por acaso, tanto faz, mudarmos, ainda que ligeiramente, o ponto de vista. Um ponto de vista é o tempo e o lugar donde levantamos a cabeça.  Ficamos atónitos.

Era tudo. Foram estas as suas primeiras conclusões. Depois, a lápis -  para quem gosta de detalhes, um lápis afiado -, estava escrito em letra assaz irregular, Pela manhã, tinha conseguido virar-me uns tantos graus. Já não apanhava o vento de frente. Com o vento pelas costas, e ignorando a raíz das palavras, pensei, Que puta de ventania que está em cima desta puta desta ponte.

Mas era preciso caminhar. As pontes servem para isso. Para não parar.
As chamas, lá atrás, continuarão a dar cabo de tudo, até não haver sentimentos.