31.10.11

30.10.11

sandes de presunto

Compro um jornal, não tem notícias novas. É só um jornal. Guardo-o por princípio, ora aí está, eis onde me levaram os princípios, eis para que me servem os princípios. Peço outro café. E uma sandes de presunto. Gosto de comer sandes de presunto em gares, quem nunca experimentou comer sandes de presunto em gares, faça favor. É um bocado chato quando apanhamos bocados de gordura rançosa. Esta, por exemplo, tem um belo bocado de gordura rançosa, mas o princípio de presunção da inocência é de aplicação geral. A partir do momento em que passou do lado de lá do balcão para o lado de cá, o belo bocado de gordura rançosa diz-me exclusivamente respeito. Posso retirá-lo do meio dos dentes ou simplesmente cuspi-lo. Desde que não cuspa a gordura rançosa para cima do fornecedor do presunto nem do gerente do bar, sou livre.  Por isso destaco com as unhas o belo bocado de gordura rançosa. Deito-a fora, deito fora todos os princípios e corro para a rua. Está a chover.

26.10.11

nuvens rápidas

Sim, estou num dia não. Detesto nuvens rápidas, gosto de chuva tropical, como disse, estou num dia não, os dias em que me conformo são dias não. Isto nunca acaba, é sempre assim nos dias não, de qualquer forma não acaba, nada começa num dia não. Mas o problema dos dias não não é esse, o problema dos dias não é que não se consegue parar os pensamentos. É certo que às vezes os dias são dias não porque não se consegue ter pensamento nenhum. Às vezes, esses dias de pensamento vazio são dias sim. Então, onde está a diferença? Do mesmo modo, nos dias sim, tal como nos dias maus, os pensamentos também não páram. A diferença é que nos dias sim o corpo tem uma medida e nos dias não os pensamentos não se cansam.

18.10.11

Mia, em acção desde o século XVII

Há dois  domingos atrás, ao visitar o museu do azulejo, vi com estes olhos que a terra há-de comer a minha gata Mia num painel do século XVII. As semelhanças morfológicas e fisionómicas são evidentes.  Mas, apesar disso, por si só, não fazem prova. Porém, eu tenho a certeza de que é ela. Aquela é a minha Mia. Venha o mais pintado dizer-me que não ou rir-se ou sequer duvidar que um animal possa existir durante séculos. Aquele rato a escapar-lhe mesmo atrás dos seus bigodes não mente. Não, aquela só pode ser a minha Mia.

17.10.11

presa

era uma rapariga que sorria da cabeça aos pés,
e quando apanhava o cabelo o sorriso começava lá mais atrás, na curva do pescoço,
e eu ficava a ouvir as fibras dos músculos do pescoço,
e quando ela falava, eu olhava para a sua voz, que é a coisa que mais se parece com a noite, a voz,
e imaginava-a de noite, a uma janela, nas traseiras da casa,
provavelmente numa encosta desabrida,
via-a sorrir quando andava e quando ficava
parada, e também quando se desviava
das mesas e das cadeiras, e por aí fora
incluindo
o traço
das sobrancelhas,
incluindo quando se inclinava
e do cigarro caía
a cinza
ainda a arder,
e em mim entrava uma alegria
que nunca tive,
eu preciso dessa alegria,
há pessoas que precisam de crédito ou de magnésio, eu preciso dessa alegria,
vê-la assim sorrir não me deixava
dormir,
dava-me tonturas e fazia-me vaguear,
ela sorria contra tudo e eu amava-a contra tudo
inteiramente ela sorria, sim, era só isso
até se esgueirar como um cão de caça atrás do sangue

13.10.11

Outubro, ao rubro: manifestação, convocação

Seria mais fácil esperar pela eternidade
se houvesse alguma coisa para jantar

12.10.11

Outubro, ao rubro: Kafka, beijos e fantasmas

"Há muito que não lhe escrevo, Frau Milena, e mesmo hoje estou a escrever só em consequência de um incidente. Não tenho de me desculpar pelo meu silêncio, pois bem sabe como detesto cartas. Todas as desgraças da minha vida - não o afirmo para me queixar, mas sim para daí retirar uma lição de interesse mais geral - resultam, digamos, de cartas ou da possibilidade de as escrever. Nunca fui, por assim dizer, enganado pelos homens, mas pelas cartas sempre; e, na realidade, não só pelas cartas de outras pessoas, mas pelas minhas. No que me diz respeito, há aqui um desgosto pessoal sobre o qual nada mais direi, mas há também uma desgraça geral. A grande facilidade de escrever cartas deve ter introduzido no mundo - do ponto de vista puramente teórico - uma terrível desintegração das almas. É, de facto, uma relação com fantasmas, não só com o fantasma do destinatário, mas também com o nosso próprio fantasma, o qual cresce entre as linhas da carta que se escreve e, sobretudo, numa sequência de cartas onde uma corrobora a outra e a refere como testemunha. Como poderá ter surgido a ideia de que as pessoas conseguem comunicar umas com as outras através de cartas? Pode-se pensar numa pessoa distante, pode-se ir ter com uma pessoa que esteja próxima - tudo o mais está para além da força humana. Escrever cartas significa despirmo-nos diante dos fantasmas, e eles aguardam avidamente esse gesto. Beijos escritos não chegam ao destino, os fantasmas bebem-nos pelo caminho. É graças a este alimento abundante que eles se multiplicam enormemente. A humanidade sente-o, e luta contra ele; e para tentar eliminar o mais possível o elemnto fantástico entre as pessoas e criar uma comunicação natural, restaurando a paz das almas, inventou o caminho-de-ferro, o automóvel, o aeroplano. Mas isso já não serve de nada, pois estas são, evidentemente, invenções feitas no momento da queda. O adversário é de tal maneira mais calmo e mais forte: depois do serviço postal, ele inventou o telégrafo, o telefone, a telegrafia sem fios. Os fantasmas não morrerão à fome, mas nós, nós pereceremos."


(carta de Franz Kafka a Milena Jesenská; a carta continua); tradução de M. Frias Martins ("Canone Ocidental"- H. Bloom), que em nota diz ter-se socorrido da tradução inglesa de P.Boehm e da tradução francesa de A.Vialate

11.10.11

domingo no museu, MNA









7.10.11

"a escravatura tem muitas caras, a sua última ainda nós não vimos"

recordações de um espectáculo na casa conveniente, no verão de 2011

5.10.11

folhas

fossem realistas as folhas das árvores 
bravas 
e arderiam em fogueiras 
breves
se fossem realistas
ninguém as encontraria 
ao amanhecer


4.10.11

domingo no museu, MNAC


                              



3.10.11

Outubro, ao rubro: início, aulas, ISTO

Que eu pudesse, enfim, dizer o que trago dentro de mim.
Gritar: gente, mentia-vos
Ao dizer que não tenho ISTO em mim,
Quando ISTO permanece cá de dia e de noite.
Embora, justamente graças a ISTO
Soube descrever as vossas cidades inflamáveis,
Os vossos breves amores e jogos desfazendo-se em pó,
Brincos, espelhos, uma alça que caía,
Cenas em quartos e em campos após a batalha.

A escrita era para mim estratégia de camuflagem,
De apagar vestígios. Porque não se gosta daqueles
Que aspiram o proibido.


Socorro-me dos rios nos quais nadava, dos lagos
Com uma passagem entre os juncais, do vale,
Onde o eco da cantiga é secundado pela luz do ocaso,
E confesso que os meus elogios extáticos da existência
Poderiam ser meros exercícios de estilo elevado,
Mas por baixo estava ISTO que não sou capaz de nomear.

ISTO é comparável aos pensamentos do desabrigado
Quando vai pela cidade gélida e estranha.

E ao instante em que o judeu acossado vê aproximarem-se
Os pesados capacetes dos gendarmes alemães.

ISTO revela-se também quando um príncipe vai à cidade
E vê o mundo real: a miséria, a doença, a velhice e a morte.

ISTO está igualmente no rosto petrificado de quem
Descobriu que foi para sempre abandonado.

E nas palavras do médico sobre a sentença sem recurso.

Porque ISTO significa o esbarrar contra o muro,
Sabendo que ele não cederá a quaisquer implorações nossas.





Czesław MIŁOSZ - Alguns Gostam de Poesia, Antologia - cavalo de fogo