29.2.08

sem chama

Vi-o ontem no café e fez-me pena. Estou a falar do Puma Branca. Levou uma carecada e deixou crescer o bigode. Isto para começar. Depois há outra coisa que me tem feito impressão: anda sempre com um cigarro na boca ou seguro entre os dedos. Por acender, 'tá claro, o Puma Branca leva a Lei como ela é para ser levada: muito a sério. Mas, mesmo apagado, o Puma Branca tosse. Anda com uma tosse terrível, coitado. Nunca tinha visto o Puma Branca assim.

28.2.08

em agenda

Folheando a agenda, encontrei várias receitas em lista de espera:
Lombo de Bacalhau braseado em lascas, Carbonara de Atum e Migas Ripadas.

Também encontrei vários poemas: 2 de Ezra Pound, vários de Manoel de Barros e um de Karoline Gunderode, 1780-1806: "Se Amas o Negro".

27.2.08

sobre a fraseologia (os diários de Elf)

Podes tirar o cavalinho da chuva, disse o Jovem Adulto para a Jovem Adulta acompanhante. Depois houve um problema com o cartão de crédito e deixei de pensar na expressão que eu não esperava ver ali, a concluir o diálogo entre aqueles dois, tão dourados, tão bem postos, tão bem cheirosos, tão longe das cavalariças. Ditado, aforismo, brocardo, adágio, provérbio, refrão, levo para casa a escolha de como nomear a expressão e sobretudo um enorme cansaço. É sexta-feira, falta uma semana para o final do mês, os clientes escasseiam. Meditação em vez de entradas na caixa. Já tive dias melhores.
"Podes tirar o cavalinho da chuva" é uma expressão que me ocorre com uma frequência acima da média. E, nessas circunstâncias, perguntar-me-ia Elf, a Empregada de Loja Fina, se acaso lesse esta edição crítica dos seus Diários, o que é a Média.

26.2.08

Do Livro XII

XII,I,1. Ngaen-Uen perguntou sobre a virtude Jn. Disse o Mestre: "Vencer-se a si mesmo e restaurar as relações sociais, é o que se chama Humanismo ou Caridade; se dia a dia nos vencermos a nós mesmos e assegurarmos as relações sociais, o mundo todo se tornará humano. A prática da Caridade começa por si mesmo ou pelos outros?"
2.
Disse Ngaen-Uen: "Peço-vos que me digais os passos a dar". Disse o Mestre: "O que não for correcto, não se vê; o que não for correcto, não se ouve; o que não for correcto, não se diz; o que não for correcto, não se faz".

Quadrivolume de Confúcio
tradução e notas de Pe. Joaquim Guerra, missionário de Shiu-Hing

22.2.08

calendário

Vim agora de metro. No banco ao lado, três chineses a falar chinês. Pelo sotaque pareceu-me mandarim. Já é dia 22.

21.2.08

inconfidências

Na viagem para lá, fiquei sentada em frente a um político. Não o reconheci logo. Falava ao telemóvel para uma rádio, ou para uma televisão onde passam rádio com legendas. Entretanto, a chamada caíu. Segundo ele, aquele comboio não devia estar preparado para tal grau de telecomunicação. Isto por palavras minhas. Não sei porquê, pensei, ao preço a que são os bilhetes não se percebe porque caem as chamadas. Mas como eu não era para ali chamada, nada disse. Não disse mas pensei: 30 euros de Lisboa a Coimbra, fosca-se, como diz a criança do rés-de-chão. Mas a culpa foi minha que perdi o comboio dos desabonados. Não quero usar a palavra pobre. Caiu em desuso e, além disso, faz-me impressão. Mas isto eu não disse ao político. Aliás, não disse nada. Aquele não era o sítio para me lamuriar por causa de 30 euros. Um euro e meio por quilómetro. Pensando assim, nem parece muito.

Há coisas piores. Exemplo: as coimas de trânsito. Exemplo: a factura da electricidade no Inverno. E finalmente, exemplo dos exemplos: o preço dos espectáculos da Pina Bausch. Vou parar os exemplos, antes que os caminhos de ferro me ofereçam emprego. Exemplo: relações públicas. O político despiu o casaco e abriu o laptop. Ou já estaria aberto, não posso jurar. Entre jornais e revistas, havia 2 envelopes dobrados na mesa. Num deles detectei o logotipo parlamentar. Estava confirmado o ramo. Mas o meu estágio de detective não.

Continuava a faltar a identidade. O nome estava do outro lado do envelope, do lado dobrado. Tremi quando o político começou a rasgar papéis. Quase desesperei. Mas antes de chegar a Pombal finalmente consegui ler o nome. Pois claro. De repente, todo o meu esforço me pareceu inútil. Conheço o homem para aí há uns 30 anos, isto para rimar com os 30 euros. Não vou revelar segredos de estado mas sinto que não será muito censurável- e se for, conto com a atenuante deste largo convívio - e vou confidenciar duas palavras usadas na declaração presumidamente radiofónica do político que viajou à minha frente no comboio alfa: nostalgia e esteriotipo. Mais umas palavras assim e acabo a votar nele.

20.2.08

inícios (15)

Este livro foi feito por Don Iohan, filho do mui nobre infante Don Manuel, desejando que os homens fizessem neste mundo obras tais que fossem proveitosas para as suas honras e fazendas, e para os seus estados, e que fossem mais chegados à carreira, para que pudessem salvar as suas almas. E nele pôs os exemplos de mais proveito que soube das coisas que aconteceram, para que os homens possam fazer isto que dito está. E seria maravilha se, de qualquer coisa que haja acontecido a qualquer homem, neste livro não se achasse, com semelhança do que a outro aconteceu.

"O CONDE LUCANOR"
por Don Juan Manuel, que nasceu em Escalona, nas margens do Alberche, no ano de 1282, aos cinco dias do mês de Maio, uma terça-feira
Assírio&Alvim

19.2.08

sobre a dogmática (diários de Elf)

O Cliente é um pequeno investidor dum conhecido banco. Vive do seu trabalho, portanto. O seu trabalho é estar atento. Foi o que melhor conseguiu depois da reforma. Tem opiniões e faz as palavras cruzadas. O Cliente é um conversador.

Gosta de tudo bem embrulhado da mesma forma que gosta de tudo bem explicado e, sobretudo, gosta de ser ele a explicar tudo. Tudo tem uma explicação. Esta tarde, quando passou pela loja, ao mesmo tempo que a Cliente de Saco Azul (não quero fazer insinuações, mas já não é a primeira vez), deu-lhe para se pronunciar sobre o estado da Justiça, com letra grande, apesar de tudo, como ele diz.

Quanto a ele (o Cliente foi muito veemente neste particular) a palavra crise é uma palavra forte. Não é que não goste de palavras fortes. Adora-as. Mas prefere usar outra palavra tão forte quanto a primeira mas menos meditática e por isso mais sólida. Quanto a ele há um estado, a justiça tem um estado, que é precisamente o estado da Justiça. E acrescentou: - Não sei se me fiz explicar?

Neste passo, o Cliente deparou-se com o meu mutismo, um mutismo profissional, calculado, temperado. Pois é, mas com certeza - e mais não disse. Só por um momento estive para o quebrar, leia-se o mutismo. Foi quando o Cliente Pequeno Investidor se afastou um passo da caixa e colocou a voz (talvez para ser ouvido pela Cliente do Saco Azul que, vi-a pela câmara de segurança, estava ao fundo da loja): - Sabe o que eu lhe digo? Nos Tribunais brinca-se ao Direito e esquece-se a Justiça. Satisfeito consigo próprio, fez uma pausa introspectiva e disse: - Esta agora saiu-me sem eu querer, nunca tinha pensado nisto. E repetiu grave: - Nos Tribunais brinca-se ao Direito e esquece-se a Justiça. E sorriu. Para a Cliente do Saco Azul, caso houvesse dúvidas. Estou a ouvir os passos da patroa na escada do armazém. Vem aí. Stop.

Mão amiga fez-me chegar mais uma remessa dos diários de Elf, a Empregada de Loja Fina que me tem acompanhado nesta estação de Outono-Inverno. O que eu não daria para saber que teria dito Elf ( "Só por um momento estive para o quebrar, leia-se o mutismo") se o Cliente não fosse tão lesto e tão sucinto e tão certeiro na sua análise do estado da Justiça. Ou terá sido o talento para juntar numa só frase ( "nos Tribunais brinca-se ao Direito e esquece-se a Justiça") a jurisprudência, a dogmática jurídica e a política criminal?

15.2.08

o dia das namoradas

Um convite de última hora e o lugar era cá da je. 13-3-15-W-1. Ainda tenho aqui o bilhete do Benfica-FC Nuremberga. Eis-me no Estádio da Luz, por detrás da nossa baliza, muitos metros acima, posso até dizer, sem exagerar, que para planar já faltou mais. E se a mim própria me designo na língua de Racine e de Rosseau, no que aos R concerne, não é para me armar ao pingarelho mas apenas por incontida vontade de dar um passo rumo ao multilinguismo - e, enfim, por uma pontinha de inveja desde que o destino me levou a um blogue em que os posts num dia são em alemão, no dia a seguir em português, e onde não há semana sem inglês, nem lua sem francês.

(Pingarelho, s.m. Pau de armar lousas (armadilhas).||Qualquer coisa pouco segura, prestes a cair e, p.ext., armadilha nestas condições.|| Armar ao pingarelho, usar de artifícios e rodeios para conseguir determinado fim.)

Suspeito eu, suspeita toda a gente, por ser o dia dos namorados havia mais mulheres do que é habitual. Os rapazes não se devem ter lembrado disso, se não teriam jogado melhor. Acho eu. O jogo foi bastante fraco. Eu olhava e pensava quando é que o jogo chega ao fim, quando é que a época chega ao fim, quer dizer, pensava e olhava já para a próxima pré-época: as contratações, os torneios, os estágios, os sorteios, até o novo equipamento, quer dizer, as pequenas vibrações a que nos vamos conformando. Depois um dos nossos rapazes - o nosso rapaz -, fez uma bela jogada, e um outro, recentemente nosso, alto e negro, chutou a bola e foi golo. O guarda-redes deu uma ajuda, é verdade, mas aposto que o rapaz alto e negro tinha a namorada entre a assistência e por isso, talvez mesmo só por isso, é que chutou. E ganhámos. O futebol é assim mesmo. Às vezes basta ter a namorada a assistir ao jogo para se ganhar.

Eu falo assim, leve, levemente, mas devo dizer que isto não é fácil, ver em campo papoilas saltitantes assim, sem jogo, sem geometria, sem aura, pelo menos para quem nasceu no ano da conquista da Taça Latina e aos 4 anos já era bicampeã europeia não é nada fácil. Ontem o Benfica obteve a sua centésima vitória em casa em jogos oficiais da uefa e isso devia encher-me de orgulho imenso em vez de queixas sobre o estado da arte. E quem disse que não faz?

14.2.08

anúncio mobilado

E é mobilado? /---/ Mais a sala?/---/ Ah, a cozinha é grande. /---/ Pois. Eu sei. Disse 500? /---/ 535. Pois. Eu compreendo. É mobilado. /---/Sim, sim. Claro. Um dos quartos não tem janela. /---/ Vou falar com a minha colega. /---/Não. Diga, diga /---/ Isso não lhe posso garantir já. /---/ Não. Somos estudantes. /---/Eu depois digo alguma coisa./---/Nós sabemos onde fica. Linha azul.

13.2.08

nível intelectual

"Hoy tu nivel intelectual es del 1%" etc, etc. Assim começava o mail com o meu biorritmo de hoje. Há sempre um dia pior que o outro. Amanhã é pior.

12.2.08

dizem

DIZEM, MEU AMOR, QUE NESTE INVERNO OS VENTOS
Dizem, meu amor, que neste inverno os ventos
passarão a mão pela seara e levarão o trigo;
que os dias serão escuros e frios - e tão curtos
que neles não caberá paixão alguma, por pequena
que seja. Contam que os punhais de chuva se abaterão
sobre os pomares; e que as árvores crescerão
como feixes de serpentes, procurando ganhar
desesperadamente o céu. E acrescentam que

os pássaros adivinham tudo isto e que por isso
se calam de manhã - ouço-os bater as asas
num aceno triste; partem para o sul, dizem,
se dizem a verdade.

Só a casa ficará de pé a olhar a planície. E
dentro dela os sonhos e as recordações do verão -
retratos dos lugares que nunca visitámos, uma camisa
de linho no espaldar da cadeira; um livro para sempre
interrompido sobre a cama. Ouvíamos uma canção triste
na grafonola velha. Dançaríamos o ano inteiro, disseram
uma noite ao ver-nos atravessar a sombra da lua.
Ignoravam, então, o inverno.

Maria do Rosário Pedreira
In “366 poemas que falam de amor”, Quetzal Editores

antologia organizada por Vasco Graça Moura

8.2.08

entre dois almoços

Vou para Coimbra. Parto depois de almoço. Regresso amanhã depois de almoço. Não é perto nem longe, mas Coimbra já foi longe. Há 30 anos era longe. Há 300 uma experiência muito aventurosa, calculo.

7.2.08

croissant simples

Não me olhe assim, disse ela. Depois passou o guardanapo pelos lábios, contra os lábios, segurando-o com a ponta dos dedos. Deixou também escapar um olhar para o movimento na mesa ao lado. Pouco depois amarrotou o papel entre as mãos, uma contra a outra. Abandonou-o no pires debruado a verde seco, onde o papel se misturou com os restos de croissant simples, um croissent que ele tinha pedido para ela: "-E você, o que é que vai comer?"
Depois dela partir, ele desembrulhou o papel e pode ler no carmim deixado pelos lábios dela a palavra "adeus". Ficou ainda mais triste porque agora ele podia ler o que estava escrito desde sempre.

6.2.08

ilegível

gatafunhos e rabiscos, traços prontos a rasgar a página, e de entre as linhas inúteis, apenas distingo o seguinte: no fim, temperar com azeite, vinagre balsâmico e enfeitar as batas com cebolinho.

5.2.08

etiqueta

Tu, que andas sempre a dizer que cozinhas muito bem, vê lá se me convidas? Sim, acabaste de dizer que a não sei quantas disse que nunca tinha comido uns protiferoles como os teus, mais isto, mais aquilo, e eu ainda estou à espera do convite para jantar e por este andar bem posso esperar sentado. Isto disse eu, assim neste tom,'tás a ver, pra não pressionar muito.

Vocês sabem o que é que ela me respondeu? É melhor nem imaginarem. Poupem os vossos escassos neurónios porque não chegam lá e os bens escassos são preciosos, já dizia o nosso professor de economia politica. Sabem o que é que ela me respondeu?
- Não tenho talheres de peixe.

Vocês acham que ela estava a gozar comigo ou não percebeu mesmo o que eu queria dizer? É pá, é porque há-as por aí muito tapadinhas, estão a perceber, é preciso quase fazer-lhes o desenho, pá, e às vezes um sujeito adopta um tom assim na boa e elas não percebem ou não querem arriscar, sempre à espera que sejam os outros a avançar. Achas que quer luta? Sei lá, já não digo nada.

E eu? Perguntas-me o que é que eu disse? Ó pá, eu fiz de conta que a estava a levar a sério. A sério, como? A sério. Que ela não tinha talheres de peixe e que se ela quisesse eu podia levar os talheres de peixe, se fazia assim tanta questão, eu levava os talheres de peixe. Não sei se já analisaram devidamente o cenário, mas ela não só embirrou que havia de ser peixe como embirrou que o peixe não se pode comer com talheres de carne, o que é que queres, sabes como são as mulheres quando se lhes dá pròs enredos. Agora talheres de peixe! Mas por outro lado, isso já é uma esperança, se não não fazia tanta questão na ementa, não é, tanto fazia ser carne como peixe, 'tás a ver?

A próxima vez que a vir? Tens cada pergunta! Já ouviram a pergunta deste sujeito? O que é que lhe digo da próxima vez que a vir? Da próxima vez que a vir falo dos profitoles e da couve-flor gratinada - aprende que eu não duro sempre -, digo mal da chefe dele, digo bem da mala, se já foi ver aquele filme, se quer ir beber um chá ao japonês, se gosta de pato, se leu o livro que eu lhe dei no Natal. Pois dei, dei um livro no Natal, o que é que tem, poesia, as mulheres gostam de poesia. Eu nunca desisto, pá. Não sou como tu.

4.2.08

inícios (14)

Estava eu encostado ao balcão de um bar da rua 52, à espera que a Nora acabasse as compras de Natal, quando uma rapariga se levantou da mesa em que tinha estado sentada com mais três pessoas e veio ter comigo. Era pequena e loira, e quer se lhe olhasse para a cara quer para o corpo, enfiado numa roupa desportiva azul-esmalte, o resultado era satisfatório. "Você não é o Nick Charles?" perguntou.

O HOMEM TRANSPARENTE, Dashiell Hammett
trad: Helena Domingos; A Regra do Jogo (série negra)

1.2.08

antes do fim

depois do problema resolvido, encontrar o provérbio nele inscrito