31.12.08

meia de leite

O homem do talho pôs os cotovelos no balcão e pediu uma meia de leite. Desviei o olhar. Sempre embirrei com as meias de leite. Se eu fosse inglesa criava um top ten das minhas embirrações só por causa das meias de leite.

Preferi desviar o olhar. Concluídas as primeiras cinco páginas do livro que levava comigo, insisti. Apanhei o homem do talho com uma bola de berlim atravessada na boca no momento em que um bocadinho de creme se soltou e caíu ao chão. O homem do talho primeiro tentou apanhá-lo no ar, depois encostou o pé e empatou o jogo. Tudo isto enquanto mastigava a meia bola de berlim, e com a meia de leite na mão, agitando-a, como se algures no tempo um metrónomo concertasse todos aqueles movimentos. Bebeu uma pinguinha. Afastou os grãos de açucar da cara e fez um movimento com a língua no interior da boca. Estava nervoso. Olhou nervoso para a meia de leite.

Ainda tinha outra meia bola de berlim para comer e não tinha outra meia de leite para beber. Desviei o olhar. Nada podia fazer por ele. Ele continuou no seu dilema. Eu fingi que escrevia isto num guardanapo: tréguas, hoje é o último dia do ano.

29.12.08

inícios (22)

- Há uma data na varanda desta sala - disse Germana - que lembra a época em que a casa se reconstruiu. Um incêndio, por alturas de 1870, reduziu a cinzas toda a estrutura primitiva. Mas a quinta é exactamente a mesma, com a mesma vessada, o mesmo montado, aforados à Coroa há mais de dois séculos e que têm permanecido na sucessão directa da mesma família de lavradores.
A SIBILA
Agustina Bessa Luís

Guimarães & C.ª Editores

25.12.08

exercícios (ontem jantei)

Ontem jantei sem ela.
Ontem jantei costeletas. Com hortelã.
Ontem jantei rabanetes.
Ontem jantei com ela.
Ontem jantei às duas da manhã.
Ontem jantei no sofá que trouxe do Ikea.
Ontem jantei em S.Petersburgo.
Ontem jantámos os dois.
Ontem jantei numa estação de serviço.
Ontem jantei na Travessa do Enviado de Inglaterra.
Ontem jantei numa mesa com três castiçais e um vaso de orquídias na varanda.
Ontem jantei ao pé dum cemitério.
Ontem não jantei.

24.12.08

natal

Mais logo é noite de Natal. Eu desejaria estar à espera do Menino Jesus, em Évora, diante da chaminé; saber que lá fora há frio, provar a cacholeira assada, deixar-me enfeitiçar pelos cristais da garrafa de anis, ao som do rádio. Hoje interrogo-me como é que conseguia adormecer e esperar pela manhã seguinte. Devia ter muito sono ou acreditar muito. Em qualquer dos casos, resultava. Acordava cedo. A casa cheirava a carne frita e bacalhau cozido, eu olhava para os restos de bolo e aproximava-me da chaminé e via finalmente qualquer coisa no sapatinho, qualquer coisa que o Menino Jesus lá tinha deixado, evidentemente.

Esta noite estarei na Penha de França, pensarei nos meus mortos, no salto que não darei, no tremendo equívoco que foi a minha vida, no futuro que nunca mais passa. A nostalgia é muito útil no Natal.

23.12.08

a lanterna

O pai era ferroviário. Quando se levantava de noite, tinha sempre uma lanterna à mão. Essa imagem apareceu-lhe quando entrou na estação com a filha pela mão.

22.12.08

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19.12.08

a medida

Era uma ilha onde os habitantes conheciam todos os cães pelo nome .

18.12.08

ainda agora

Nevoeiro: amanheceres no Alentejo, máquina de fumo, D.Sebastião, hoje mesmo ao acordar. Escrevo aqui e não além, como se dum caderno de significados se tratasse.

17.12.08

XIV

Através do teu coração passou um barco
Que não pára de seguir sem ti o seu caminho.

Navegações
Sophia de Mello Breyner Andressen

16.12.08

à espera dos linguadinhos (com arroz de feijão)

Estás a falar sozinha?

Olha para mim. O que é que estavas a dizer? Estavas a falar sozinha? Diz-me lá, o que é que estavas a dizer? Eu não ouvi, como estavas a falar sozinha eu não ouvi. O que é que estavas a dizer? O que é que estavas a dizer? Olha para mim. Estavas a falar sozinha? Eu não ouvi. Olha para mim. Olha para mim. Olha para mim.

15.12.08

a limpeza

Limpou a janela com a competência que se lhe conhecia. Divergiu da colega sobre a técnica, os materiais, os pequenos truques, o ritmo, o tempo médio que cada janela levava a limpar e, finalmente, deixou as superfícies vidradas de lado, virou-se para as empadas da pastelaria. Que já tinham estado muito melhores, que a massa cada vez valia menos, e encontrava bocados de ossos, e às vezes até a deixavam queimar, ela sabia muito bem, há anos que comia aquelas empadas, não lhe viessem dizer que estavam iguaizinhas ao que eram quando a casa abriu. Isso não. Era um hábito aquele, estar sempre a discutir. Às vezes a colega recusava-se a discutir, como naquela madrugada , quando perguntou: - Gostava de saber porque é que no Natal passam filmes de violência na televisão? A colega respondeu: - E eu gostava de saber porque é que eu hei-de ter que responder. Nem as empadas escapam. O que é que me interessam as empadas? Já me viste comer alguma empada, já? Então se não viste porque é que me vens com essa conversa das empadas? Sabes que mais? Olha o melhor é eu calar-me .

Passados uns minutos, mais calmas, e já com três quartos das janelas lavadas, a que tinha a mania das discussões - meu Deus, como ela adorava uma boa discussão, era o que ela costumava dizer às pessoas, "eu adoro uma boa discussão", dava vontade de acrescentar "quase tanto como como uma boa empada" - ela, então, disse: - Ouve lá, mas afinal não me respondeste: achas bem que passem filmes de violência no Natal? A outra abriu a janela de par em par.

Naquela madrugada ouviu-se por toda a cidade uma palavra. A cidade acordou. Não toda, mas muita gente acordou. As pessoas que acordaram contaram às que não acordaram que tinham ouvido nessa madrugada um palavra gritada, uma palavra que circulava abaixo das nuvens, uma palavra urgente e definitiva. Ninguém sabia explicar a origem desse eco mas todos pronunciavam a palavra. A palavra, simples, não tinha nada de misterioso. Só era inquietante a forma como cada qual tentava reproduzi-la, para não trair nem a memória nem a imaginação dessa madrugada. Passados muitos anos, para quem não assistiu, é difícil acreditar que possa haver alguma coisa de inquietante na palavra "sim".

12.12.08

pequeno almoço tardio

Bebeu o café. Pousou a chávena e agarrou no copo, rodou-o entre os dedos, agitou o líquido e bebeu-o satisfeito. Era sumo de laranja natural. Abriu os braços e espreguiçou-se. Só depois comeu a meia torrada. Desde pequeno que fazia tudo ao contrário. Antes de ali chegar fumara um charuto longamente,

11.12.08

Amália

Quando o pensamento me ocorreu achei-o absurdo: Amália foi quem mais me fez chorar em toda a minha vida. Ora por causa de um fado, e às vezes um fado chega aos meus ouvidos como se nunca o tivesse ouvido, ora por causa de uma imagem sempre outra, os olhos fechados, o grande rio ao fundo. Ora porque estou contente, porque sou triste, por causa duma certa maneira, por causa duma nota suspensa, porque passo na Mouraria, porque passo na Madragoa, por um ciúme, por uma resignação, ou se uma gaivota vier. Sei lá as vezes que eu já chorei à conta de Amália. Quando sexta-feira saí do Londres depois de ver um filme sem cinema, arrumei a coisa sob um "que se lixe" de fim de tarde. Atravessei a Alameda por entre os cães, os donos e as crianças nos baloiços, e fui para casa ouvir o "Com que voz" duma ponta à outra. Amália dá-me um intervalo, uma consciência, é um tumulto mas também uma serenidade, como um sol que ilumina o negro.

10.12.08

lucidez

- E tu Nina, como é que tu és?
- Eu?
E olhou a interlocutora de alto a baixo, para marcar de forma absoluta a inutilidade da pergunta.
- Eu sou linda!

(diálogo no infantário, entre a Nina, uma jovem eslava de 5 anos, e a Rosário, educadora, "a minha vizinha do 2º")

9.12.08

aforismos; Kafka; tradução

67. Ele corre atrás dos factos como um principiante da patinagem sobre gelo, que, ainda por cima, pratica no sítio onde isso é proibido. 94.Duas tarefas do princípio da vida: restringir cada vez mais o teu círculo e verificar constantemente se não estás escondido algures fora do teu círculo. 43.Os cães de caça estão ainda a brincar no quintal, mas a caça não lhes escapa, por muito que esteja já a correr por entre a floresta. 5.A partir de um certo ponto já não há regresso. Há que atingir este ponto.


trad.:Álvaro Gonçalves; Assírio& Alvim, 2008
na nota de apresentação de "Aforismos", feita pelo tradutor, pode ler-se: "Esta edição de "Aforismos" segue rigorosamente a edição crítica denominada Franz Kafka, Nachgelassene Schriften und Fragmenten II. In der Fassung der Handschriften" (...) esta obra surge titulada em itálico e com aspas, indicando que o título de "Aforismos" não é da responsabilidade de Franz Kafka, mas que segue tão-somente o título do índice do volume da edição crítica acima citada."

8.12.08

a capa do livro

Assim que lá chegou arrependeu-se e abandonou o livro em cima do edredon. "Meu Deus, o frio que está". Estava frio. Diz-se que as noites frias convidam à leitura. Deveria acrescentar-se, pensou, se os quartos estiverem aquecidos. As noites frias são boas se forem quentes, ora aí está. Esta reflexão deixou-a satisfeita. Deixou também a cabeça de fora e apagou a luz.

Na escuridão tentou lembrar-se do nome da cidade que estava na capa, em letras impressas sobre o cabelo do autor, nariz afilado, a olhar para nós. Gosta desse olhar, direito à objectiva, que jeito que dão as objectivas. Dispensam-na de interpretar, pelo menos de interpretar olhares, e assim escapar aos sentimentos de inveja e pavor que lhe provocam as pessoas que têm sempre uma interpretação engatilhada. Ela preferia confiar nas objectivas e no olhar que, diga-se, pelo menos naquele caso, eram uma e a mesma coisa.

Virou-se. Ouviu ao longe uns pneus desesperados. Abriu os olhos. Sempre achou que aquela passadeira estava mal colocada. Fechou os olhos. A cidade começava por w., lembrou-se ou pensa que se lembrou, como veremos. Acha que sorriu. É um bocado estúpido sorrir na escuridão. Nem para a própria sombra se sorri. É desolador. É estúpido. Este pensamento esgotou-a e adormeceu.

Acordou às 6 da manhã. Acordava pontualmente às 6 da manhã. Os vizinhos do andar superior acordavam cedo, às 6 da manhã. Ouviu por cima da sua cabeça o soalho a ranger, uma cama a ranger, pés, pés com botas a ranger. São emigrantes. Não têm culpa. Às vezes também se levantava às 6 da manhã, mesmo sem ser emigrante, custava-lhe, os pés gelados e sem culpa percorriam o corredor, cujo soalho rangia e, nesses dias, é possível que no andar inferior alguém acordasse às 6 da manhã. É a cadeia alimentar. Não há maneira de evitar esse tal soalho das 6 da manhã. Acendeu a luz, olhou para o lado e irritou-se: a tal cidade não começava por w. e talvez nem sequer cidade fosse. Começava por z.

Pegou no livro de capa amarela e leu o primeiro aforismo:

O verdadeiro caminho passa por uma corda que não está esticada ao alto, mas rente ao chão. Parece antes destinar-se a fazer tropeçar do que a ser percorrida.

Por baixo estava o aforismo no original: der wabre Weg geht e não sei que mais, não tinha paciência, passou à frente. Fosse como fosse de nada serviria: não sabia alemão.
Leu os aforismos todos seguidos. Chegou ao 37 ou ao 38, sim, talvez tivesse chegado ao 38. Os aforismos provocavam-lhe esta estranha reacção: punha-se a lê-los todos de seguida e a dada altura começava a saltitar, acabando por espreitar o último, como se fosse o fim. Neste caso foi a partir do 37 ou 38 que começou a saltitar. Escorregou no 67. Daí para o 94. Voltou atrás: 43. Ah, o 43., o 43. No 5 fechou os olhos.

Pousou o livro no edredon e o gato sentou-se sobre a capa: Franz Kafka, "Aforismos" "(escritos na localidade histórica de Zurau)", Assírio&Alvim. Havia uma vinheta colada que o gato raspou com a garra: "125 anos do nascimento de Franz Kafka". De olhos fechados, sorriu. Pôs-se a imaginar Kafka com 125 anos. Era possível. Fechou mais os olhos e imaginou Tolstoi com 180 anos. Imaginar Tolstoi com 180 anos é mais complicado, é muito complicado. E Rosseau ? Com 296? Querem ver que não sou capaz de imaginar Rosseau com 296 anos? Estava quase a adormecer. Mas adormecer não é desistir. A ver se não se esquecia de amanhã começar pelo Rosseau, depois Caravaggio, depois Dante, depois.

5.12.08

outra pergunta

- Estás a pensar em quê?
- Mas queres mesmo saber em que é que eu estou a pensar?

(Não. Tenho medo que não estejas a pensar em mim).

4.12.08

a pergunta

"Um dia pergunto o teu nome". Passei o pacote de açúcar duma mão para a outra e meti-o no bolso. Em casa guardei-o no sítio dos pacotes de açúcar: "um dia arranjo uma casa à beira-mar", "um dia desato a cantar na rua", "um dia escrevo-te uma canção", "um dia pergunto o teu nome". Eu tenho vários nomes. Tenho o ascendente em Gémeos. Sempre que me constipo, lembro-me de Fernando Pessoa.

2.12.08

Fera sou

Fera sou deste lugar sombrio
E com uma flecha no ombro
fujo, triste, ao cabo da minha dor
e o cerco que lentamente me agrilhoa.

Como a ave que o fogo arde
entre as plumas, a fugir num voo
do seu ninho quente, a ao debandar
o fogo aviva com as próprias asas.

Assim eu entre a aurora estival e as sombras,
voando alto com as asas do desejo,
tento escapar do fogo que me queima.

Quanto mais eu voo entre as margens
fugindo deste mal, com um salto feroz
sobre a morte lenta, procuro a vida curta.

CHIARA MATRINI (1514-1597)
Rosa dos Ventos, Assírio&Alvim
trad.: J.H.Bastos

1.12.08

fashion

Castafiori telefonou-me. Chorosa, desamparada, irreconhecível. Uma queda, um pé torcido, um grande aborrecimento. Estava em casa cheia de dores e, agora que tinham passado umas horas, o seu estado agravara-se, não sabia se havia de ir ao hospital. Receava ter alguma coisa partida mas ainda receava mais as horas de espera na urgência. E depois toda aquela gente a tossir, em cima uns dos outros, e as máquinas de café sem trocos, ciganos no exterior, polícias com bonés de basebol, radiologistas apressados, ortopedistas sem piedade, meu Deus, já bastava o pé partido. Não estaria a exagerar?

"- Conhece a minha fragilidade neste pé, não conhece? Desde pequena que estas coisas me acontecem, 'tá a ver?" Só não digo que larguei tudo para ir ter com ela porque eu, diga-se a verdade, não estava a fazer nada. Efectivamente, testemunhei várias vezes ao longo da nossa já longa amizade a famosa fragilidade do pé direito de Madame Castafiori onde, segundo ela, pouca coisa ainda se assemelhará a ligamentos, apesar de existirem 107 em cada pé, como veio a referir duas horas mais tarde o ortopedista de serviço.

Subi apressadamente as escadas e, pensando agora em retrospectiva, eu acho que o cheiro já lá estava, já me cheirava a verniz nas escadas. Mas a situação urgia. Encontrei Madame Castafiori a pintar as unhas dos pés, sim, dos pés, no plural, com um verniz carmim, espesso, brilho médio, todo ele química. Sentei-me sem uma palavra. "- Já sei o que está a pensar. Eu sei que não percebe estas coisas, mas eu não podia ir assim para o hospital. Evidentemente." Admirei-me com o suspiro normativo que interrompeu a frase. Segundos depois completou-a:"- Como uma vadia". Sentindo que o argumento tinho caído em mim como uma fogueira no S.João, Castafiori virou-se para mim: "- Gosta da cor?"

Eu disse que sim, que havia eu de dizer? Não? Sim, parecia-me bem, a cor. "- É para dar com o roxo, a blusa é roxa e o casaco também, 'tá a ver?" E mudando definitivamente de tom, agora mais grave, mais envolvente, outro treino, enfim, levantou voo: "-Acha que eu vou bem de roxo para o Hospital?" Não sei se Castafiori terá repetido a pergunta diante do ortopedista que confirmou que, de facto, havia ali uma fractura antiga, mal tratada, ou tratada, quem sabe, com demasiada piedade, e que lhe afectava todo o ciclo biomecânico. Felizmente, desta vez estava inteira.

28.11.08

reforma

"Diz que se vai embora. Finalmente digo eu. Não é que eu tenha alguma coisa a apontar-lhe. Sabes que a mim desde que não se metam comigo eu também não me meto com ninguém. Ontem chegou ao pé de mim e disse-me: ah, depois do Natal já não venho, já fui tratar dos papéis e em passando o Natal já não venho. Digo eu assim, olha, ainda vais ter muitas saudades nossas. " (isto era A a falar; agora B:) "Você disse isso? A ver se arrumamos uma prendinha para lhe dar. Vi uma canequinha muito legal, com umas estrelinhas e o Pai Natal e aqueles animais, como é que vocês chamam aqueles animais?" A: "Renas. Lá no Brasil como é que vocês dizem?" B: "Renas. Ela vai ficar onde, volta para a terra?" A: "Não, fica cá, ela vive na Pontinha, para onde é que queres que vá? Pronto, com todo o seu feitio, 'tá bem, mas cada qual é como cada qual, mas eu até gosto dela".

No fim, A tirou um, dois, três guardanapos de papel do suporte e limpou as mãos.

27.11.08

esta é a cabeça

No domingo fui ao Museu do Azulejo e comprei um livro em "rebaja". Um livro preto e bonito, em papel de 115 gramas e ilustrado com páginas do testamento de D.João II e coisas do género. Mas do que eu mais gostei foi do título: "Esta é a cabeça de São Pantaleão". Que belo título, não me ocorria mais nada que exclamar e exclamei: "Esta é a cabeça de São Pantaleão". Abri o livro na página 21 : "Ao contrário das sociedades modernas que expulsam os mortos do mundo dos vivos, os homens e as mulheres da idade média conviviam naturalmente com os mortos, atribuindo-lhes um papel determinante na comunidade". E continuava, continuava sempre, enfim, uma coisa mesmo à maneira da minha obsessão com a morte. E agora deveria escrever, como se estivessse no século XIX, o meu verdadeiro século, "tanto bastou para que o tivesse comprado". Não, não e não. Comprei-o por causa do título, assim é que é: "Esta é a cabeça de São Pantaleão". É ou não é um título bestial?

26.11.08

ar quente

O sol sobre o braço, dobrado, reparei por casualidade e desviei o braço dobrado sobre o lençol. Facilmente reflectiu o sol e o calor subiu por mim. Olhei para o terraço e tentei calcular quanto tempo ainda tinha. Deixei-me ficar.

25.11.08

a capa

O cão tinha uma capa e uma trela na boca. A dona tinha uma capa e um cigarro na boca. Ambas as capas eram negras como os tubos do esgoto. Quanto à trela e ao cigarro não se verificava nem a similitude nem a desajeitada metáfora: a trela era encarnada e o cigarro era branco, incluindo o filtro.

Atravessaram o relvado da Alameda, que é verde. O céu não estava azul como nas manhãs inspiradoras, estava cinzento. Ameaçava chuva, portanto. Desejei praticamente e com todas as minhas forças que a carga de água chegasse e que nem a capa de um nem a do outro servissem para coisa alguma.

Caso não tenha ficado explícito: não suporto cães com capas, ou capinhas como os donos preferem nomeá-las, no intento desesperado de adequar a semântica ao tamanho dos seus melhores amigos. Só isso justifica que, apesar de desprovida de guarda-chuva ou qualquer sorte de capa ou capinha, tenha ficado subitamente feliz quando começou a chover.

24.11.08

o curso

É verdade. Madame Castafiori perguntou-me : "Não se quer inscrever num curso de optimismo?" Eu aguento muita coisa de boca calada como os polícias no meio do trânsito mas, francamente, até quando me continuarei a rir para não entrar no insulto, pensei. Castafiori deve ter intuido a minha indignação - como a própria diz, tem uma intuição incomparável - porque acrescentou, voz colocada, séria, disponível, como se a idiota fosse eu: " Não se ria. Acabei de ver na internet."

12.11.08

inícios (21)

La réponse de M.Le Marquis de Croisemare, s'il m'en fait une, me fournira les primières lignes de ce récit. Avant que de lui écrire, j'ai voulu le connaître. C'est un homme du monde, il s'est illustré au service; il est âgé, il a été marié; il a une fille et deux fils qu'il aime et dont il est chéri. Il a de la naissence, des lumières, de l'esprit, de la gaieté, du goût pour les beaux-arts, et surtout de l'originalité.
La Religieuse
Denis Diderot (1713-1784)

9.11.08

a questão

O Senhor Pulido, Vasco Pulido Valente, escreve no Público. Sempre embirrei com ele. Já escreveu no DN, no Independente, no Tempo. Sempre embirrei com ele. Nada de original. Felizmente, o Senhor Pulido está-se a marimbar para nós. Ontem escreveu sobre o caso BPN. Chamou-lhe "Uma Questão de Estado". Só pelo título uma pessoa percebe logo que, se ler, fica a pensar melhor. Não é difícil adivinhar que é por isso que o leio desde sempre.

"Se a justiça portuguesa não desembaraça rapidamente a tremenda meada do BNP, se não apura rapidamente responsabilidades sem respeito ao estatuto e posição seja de quem for e se não julga e pune rapidamente os culpados, prova, proclama e fundamenta a corrupção do Estado. Existe uma diferença entre o que sucedeu no BPN e um assalto a uma ourivesaria".

6.11.08

E vá lá

Acabei de chegar. Nos próximos dias darei notícias e as fotografias (que faltam). Et voilà ou, como dizia insistentemente a portuguesa de Melgaço que me apresentou Oscar Wilde em Père-Lachaise - pelo menos tão insistentemente como os franceses dizem voilà -, o filme está feito, eu estou viva, e "vá lá".

4.10.08

1.10.08

à bientôt

Amanhã por esta hora estarei no céu a caminho de França. Vou trabalhar no próximo filme de Catherine Breillat, realizadora com quem já trabalhei anteriormente ("Sex is Comedy" e "Anatomie de l'Enfer"). Não sei se vou conseguir publicar o diário fotográfico que costumo fazer durante as rodagens (não levarei o powerbookzinho). Logo se vê. Darei notícias quando chegar. À bientôt.

30.9.08

ménage

Afastou-a da sua vida como quem sacode um tapete.

29.9.08

inícios (20)

Muito se escreveu já sobre Charles Strickland e pode, à primeira vista, parecer inútil insistir no assunto.

W.Somerset MAUGHAM
Um Gosto e Seis Vinténs
The Moon and Six Pence (1919)
Livros do Brasil, colecção miniatura, s/ data

27.9.08

linha

O homem tinha o nariz comprido, muito comprido. A mulher chegou apoiada numa canadiana. Tudo naquele casal era longitudinal.

26.9.08

trajecto

Quando vou a casa da S. viro sempre na Travessa do Paraíso. Só por causa do nome.

25.9.08

lunch time

Ontem vi um gato preto ao sol. Ainda tinha duas penas na boca.

24.9.08

Bloom ou a volta ao mundo em 80 dias

Ouvi a primeira frase já a meio: '- tive um namorado alemão, tive um namorado vietnamita -' (a outra interrompeu-a):

'-Vietnamita?'.
'- Não falo chinês, que eu saiba não falo chinês, mas 'tou a ver que parece, senão já me tinhas explicado onde é que está a admiração da tua filha ter um namorado moçambicano.' '- Não é a mesma coisa, pois não?' Ela concordou: '- Felizmente para ti, não é. O que a minha mãe não deve ter passado. Apresentei-lhe alguns. A minha mãe sempre foi muito liberal-' (a outra volta a interrompê-la) '-Liberal a tua mãe?' (mas ela não faz caso) '- Ainda hoje com 84 anos fala de vez em quando 'naquele rapaz belga, tão jeitoso', como se os outros não fossem jeitosos, graças a Deus sempre tive bom gosto'. '-Belga?'. (voltou a não fazer caso) '- Sabes, de quem eu gostei mesmo foi do escocês.' '-Do Bloom?'. '- Sim, do Bloom, conheci-o em Torremolinos. Mas estávamos de férias. Não tínhamos tempo para mais nada.' Fez-se um silêncio intenso, breve.

(A outra desta vez interrompeu o silêncio) :'- Pensava que ias falar do brasileiro que conheceste em Nova Iorque-'. '-Olha, esse estava-me a passar. E tu não fujas com o rabo à seringa: qual é o problema do rapaz ser moçambicano? Um palop, giro, sem necessidade de tradução'. A outra respirou fundo. Finalmente conseguira que a outra respirasse fundo. Houve uma espécie de trégua.

A trégua envolveu outra vez o silêncio, mas desta vez acompanhado de olhares alheados, gestos repetidos, como mexer inutilmente no dedo anelar, uma tensão consentida.

Estranhou. Ela relembra num relance a última réplica e não vê motivo para tensão alguma. Teria sido a acentuação da palavra 'problema', a ligação sem pausa entre 'passar' e 'e tu não fujas'? Nada conclui e fica sem saber o que terá levado a outra a respirar profundamente. O curioso é que ela própria se sentiu afectada. Lembrou-se do dia em que se despediu de Bloom. Bloom tinha-se levantado para meter o troco no bolso, tinham acabado de tomar o pequeno almoço, e ela murmurou em português:'-Nunca mais te vou ver.' Ele disse quando se sentou: '- What you say?'. Ela respirou fundo e sorriu. Então ele disse: ' - What you say just can't be true' . Com tantas horas que o dia tem, e tantos minutos que as horas têm e tantos segundos também, tinha de ser exactamente naquele instante, no instante em que ela recordava os lábios de Bloom, o torso magro, os ridículos calções, o cheiro, os olhos azúis de Bloom que a outra resolveu falar. A interrupção é um vício. E afinal o que é que a outra tinha para dizer? Isto: '-Não queiras comparar, os tempos eram outros.'

Conteve-se e trincou a torrada e com a boca cheia disse: '-A verdade é que depois disto tudo casei-me com um gajo de Castro Marim'. '-Por favor, não chames gajo ao teu primeiro marido. Não vale a pena descer o nível da linguagem. Antes a nostalgia.'

Ela não deixava de ter razão. Mas prometi a mim mesma não voltar a pensar no Bloom.

23.9.08

os projectos

Castafiori deu notícias. Praticamente não teve férias. Por causa de um projecto. Madame Castafiori é uma mulher de projectos. Mesmo quando na sua vida são 3 da manhã, Castafiori encontra um projecto para as 3 da manhã. E eu brinco, eu rio-me.

Mas não conheço muita gente como Castafiori. Ok. Ela dá-se ares. Julga-se acima de quem corre para o 42, não entra numa casa de banho pública a não ser in extremis - para retocar os lábios, bien sûre -, fala francês com uma pronúncia irrepreensível e lamenta não poder dizer que aprendeu a tocar piano. Castafiori é o género de pessoa que não toma café se a chávena não tiver um pires por baixo. Mas uma coisa Castafiori faz sempre, com sol ou com chuva, de bem ou de mal com o mundo: levanta-se todos os dias para trabalhar. E eu posso continuar a rir. Mas só até certo ponto. Boa sorte para o seu projecto, Castafiori.

22.9.08

inícios (19)

Menina e moça me levaram de casa de minha mãe para muito longe. Que causa fosse então a daquela minha levada, era ainda pequena, não a soube. Agora não lhe ponho outra, senão que parece que já então havia de ser o que depois foi. Vivi ali tanto tempo quanto foi necessário para não poder viver em outra parte. Muito contente fui em aquela terra, mas, coitada de mim, que em breve espaço se mudou tudo aquilo que em longo tempo se buscou e para longo tempo se buscava.

Menina e Moça
Bernardim Ribeiro (?1482-1552?)

20.9.08

férias grandes (3) sandes de atum

'inventaire à la Prévert' para cinco dias de praia:

Um protector solar, duas garrafas, três euros para o bilhete, quatro folhas
em branco; e uma sandes de atum. Seis folhas impressas em papel
reciclado e um pêssego; um guardanapo caído atrás do frigorífico; uma canção do Caetano, sonho meu, atrás da
verde-e-rosa, só não vai quem já morreu;
um panamá, o mesmo protector solar; e outra sandes de atum.

Um mergulho, três homens e uma bola, os meus óculos de sol,
um veleiro em sotavento, quem vai ao mar perde o lugar; na esplanada dos espanta-espíritos
servem batidos e melão com presunto, quero água tónica e trinta e duas rodelas de limão.
Terceira sandes de atum.
Maré viva, âncoras comuns, os ricos saltam nas dunas, eu leio uma entrevista com Quique Flores; esta noite no bowlling já sei que não faço strike algum. How many
strikes you can get. Acabei de despachar a minha sandes de atum.
Tell me now.

Já joguei snooker, já joguei matrecos, vi um papagaio, fui à praia verde. Fiz a 125 para cá e para lá. Amanhã parto. Encontrei um telegrama antigo que dizia "conta muitos", etc, etc. Hoje é o meu último dia, na Ria Formosa, Santa Luzia.
Aqui.
Sento-me no café do Beto. Trago oregãos da mercearia. O circo levantou ontem. E
esta noite
ouvi o mar.
Um mapa, uma estrada, dois carros que se cruzam
na estrada, um puto de havaianas, cinco mulheres na areia, um relógio nike
com cronómetro, uma prancha, duas pranchas, chegou a vez da sereia. Mergulho.
Um pavimento flutuante.
Os jornais só falam em criminalidade violenta, quarenta assaltos e dois
sobressaltos,
o primeiro quando cheguei, o outro quando parti. Adeus
terra estreita, adeus praia do barril, já na travessia comi a quinta sandes de atum, uma por cada tarde a existir só para mim. Esta noite não jogo setas.

19.9.08

a psi

"Tenho que ir ver se a psicóloga já veio, ou o caraças..." disse ele ao outro. Ele é o Chinelo e o outro é o Puma Branca.

O Chinelo é o amigo previsível do Puma: bermudas e chinelos nos pés. Cabelo claro, discreta tatuagem acima do cotovelo, ei-lo na rua, com a paragem do 18 sob controlo e os dedos da mão direita a estalar sob a pressão da mão esquerda. Quem procurar sinais de pulseira electrónica, desengane-se. De vez em quando faz o euro milhões como eu. Pode ser que a sorte mude, uma pessoa nunca sabe.

Em tudo isto, só há uma coisa inventada: ele não disse 'ou o caraças'.

18.9.08

férias grandes (2) o arrozinho de polvo

Mértola encanta-me nesse sábado em Agosto. Ainda ontem quando atravessava a Praça da Figueira pensava nisso: mas o que é que tem Mértola? Sentei-me num banco em frente à Casa da Sorte e pus-me a associar: água, rio, o ali e o lá; Mértola debruçada sobre o rio; as margens; Mértola desalinhada sobre a linha, a corrente, imprevisível.

Mértola é feita de fragmentos sobre a água, o rio é uma promessa para além de e antes de; o exterior uma esperança. E uma ameaça. Que se controla de cima mas não de longe. Em Mértola sou capaz de imaginar alguém a construir uma varanda só para suspirar. E além disso ainda precisamos de mouras encantadas e conquistas agrestes, templos sobre templos, o branco sobre o branco. E duma palavra fascinante: árabe.

Bom, adiante, que eu não sou pessoa para ficar nem aqui nem ali de boca aberta, ai que linda que é Mértola. Não exageremos, eu fui criada em Évora. Ok Mértola, adeus Mértola.

Voltarei. Por agora prossigo nas curvas e contracurvas a que o cliozinho chama um figo. Depois uma estrada e pêras. Seguimos, já muito perto do fim da tarde, numa cadência tranquila, tão tranquila que a dada altura oiço a minha amiga (a minha amiga passa o tempo, como diria o Lopes, a serrazinar-me o juízo por causa da aceleração): '- assim é que eu gosto de andar, a esta velocidade'. Olho para o velocímetro e vejo o ponteiro entre os 70 e os 80 kms. Apanhada a conduzir como uma velhinha, apressei-me a apanhar a A22 já perto de Vila Real de Santo António.

A nossa cabeça não pára, oh yes, in deed, e vá de me lembrar do Marquês. Mas já na altura não me pareceu inteiramente certo ocupar a mente com o Marquês logo quando a luz dourada e uma brisa feliz invadiam mansamente o cliozinho. Mas pronto, o que é que se há-de fazer? Pensar é um vício. Acabo de chegar a Tavira.

Tenho uma momentânea sensação de chegar a casa, só porque há três ou quatro anos passei aqui várias semanas na rodagem do 'Kiss Me'. Pressinto a linha do horizonte, vejo umas ruínas, misturo isso com as imagens do filme, a Marisa a atravessar a ponte, vejo umas esquinas caiadas, um traço contínuo a separar o trânsito, a chuva que nos estragou um dia inteiro de rodagem e um cão vadio que por força queria entrar no plano. E entrou.

Sigo em frente. Pouco depois entro em Santa Luzia. A chave estava no R&M. O jantar da hospitalidade é arroz de polvo. Fiz uns conhecimentos nessa noite. Depois adormeci. Não sei se sonhei com alguma cativa numa varanda sobre o Guadiana, se com os caracóis do Marquês imperial, ou com as cores da ria Formosa, se com os sobreiros da estrada de Montemor a Alcáçovas. Estava cansada. No dia seguinte quando acordei apanhei o barco para a Terra Estreita.

17.9.08

ora vejamos

O café do Senhor Almiro tem um novo empregado. Dei por isso ontem pela manhã.

- Ora o que é que vai ser?
- Uma italiana.
- Uma italiana, muito bem, uma italiana.
/.../
- Ora aqui está o seu cafezinho.
- Obrigada.
- Não vai ser mais nada?
- Um copo de água.
- Muito bem. Está a sair um copito de água.
/.../
- Ora aqui tem o seu copinho de água.
/.../
- Quanto é?
- Uma moedinha de 50, mais cinco cêntimos.
- 55 cêntimos.
- 55 cêntimos, certinhos, ora bem.
/.../
- Volte sempre.

Rosnei qualquer coisa e saí. Mas, atenção, não nego os méritos do novo empregado: primeiro, não perguntou se em vez de 'uma italiana' eu não preferia 'um italiano'; segundo, depois de eu pedir 'um copo de água' não substituiu a expressão por 'um copo com água'. Estou-lhe reconhecida. Maiores males se terão evitado. Com a disposição com que acordo não sei o que teria acontecido se tais palavras tivessem sido pronunciadas. Um profissional. Ora bem.

16.9.08

férias grandes (1) o lombinho de porco preto

Já passava da uma da tarde. À porta da sede sportinguista de Viana do Alentejo estavam dois rapazes com as respectivas minis na mão. Um deles cantava. O outro respondeu à pergunta: "No fim da rua, à direita, está a ver aquele sinal?, passa duas ruas, não é a primeira nem a segunda, é a outra, sobe um bocadinho a rua, fica do lado esquerdo, mas em olhando logo vê".

Ainda não esqueci o lombinho de porco do restaurante que em olhando logo se via, esplanada improvisada à porta da rua, no metro e meio de sombra entre a parede e o alcatrão. Dali seguimos - eu, o cliozinho e uma amiga minha - rumo ao sul, rumo a Tavira, Santa Luzia exactamente. Tinha-me decidido pelo interior, numa espécie de ensaio da viagem transfronteiriça que quero fazer e para a qual nunca encontro companhia. Em Agosto? O teu carro tem ar condicionado? Tem, mas não funciona. Então não tem. Tem. Não tem. Tem, mas acabou-se o gás. O gás?! Não fazia ideia que o teu carro era a gás. Não, o ar condicionado é que... É pá, não te ponhas a explicar como é que funciona o ar condicionado, quero lá saber como é que funciona o ar condicionado, funciona e pronto, quer dizer, no teu caso não funciona. Olha lá, e não podias fazer essa tal viagem na Páscoa? Não me gozes, a viagem transfronteiriça é para ser feita no Verão, qual Páscoa, qual caraças, no Verão. Senão não se apanha o espírito da coisa. O espírito da coisa? Com o calor que está em Agosto deve ser cá um espírito... Deves ter muito a ver com isso!

Adiante. Ainda com o sabor da esplanada, e a frustração de mais um Verão não-transfronteiriço, passei por Alvito, passei por Cuba, passei ao largo de Beja, sempre à esturrina do sol, como diria a minha mãe, até apanhar a estrada para Mértola. Estávamos a 23 de Agosto, um sábado em que não corria uma aragem. A rodagem de "O Meu pai" tinha acabado dois dias antes, quinta, 21. A 22 entreguei o resto da papelada. A 23 atravessei finalmente o Tejo. Tinha-o feito há poucas horas e já começava a recordá-lo. A memória é um vício.

Nacional 4. Em Montemor cortei para Alcáçovas, onde já não ia há séculos. Entramos num café, um café de azulejos tristes, um vago cheiro a mofo, dois queques abandonados sob o vidro riscado do balcão, onde o Record de há 4 dias era a novidade mais sonante. Tem sandes? ainda me atrevi a perguntar. De queijo e fiambre. Mas sentia-me derrotada pelo ambiente, não fui capaz de dizer que farta de queijo e fiambre andava eu. Lancei então uma armadilha: "e de presunto, tem"? Não, de presunto não tinha. "Deixe lá, também não tenho muita fome". Ala que se faz tarde. Num ápice estava na rua, virei a esquina e entrei nos balneários públicos. Molhei os braços até aos cotovelos mas um rasto de má fortuna seguira-me. À posteriori, pensei que só podia ser essa a explicação. E francamente, acho que pensei bem.

Ao entrar no carro, dei voltas e mais voltas à procura dos óculos comprados em Maio, raios partam os óculos, 700 euros ainda é dinheiro, levei dois anos para mudar de óculos, raios partam a graduação progressiva. Começava a pensar que tinha sido muito má ideia passar por Alcáçovas depois de vários séculos sem lá ir. Afinal os óculos estavam caídos no interior do cliozinho e o cliozinho nada, calado, muito bem caladinho, como se não fosse nada com ele. Por esta vez vá, não ligo, the show must go on. Vinte quilómetros depois sim, ouvi uma boa notícia: " está a ver aquele sinal?, sobe um bocadinho a rua, fica do lado esquerdo, mas em olhando logo vê".

14.9.08

intercidades

Cheguei. É bom chegar a casa.

11.9.08

bandeira amarela

Contando com as gaivotas, devíamos estar para aí uma dúzia na praia. No mar não havia ninguém. Temperatura da água OK. Tempestade de areia QB. Nem dava para apanhar conchinhas. Meti-me à estrada e andei de bicicleta. Para cá o vento estava de frente. Comprei maçãs e incluí-as no jantar, eram oito e tal e o pinhal estava silencioso. Estou no Norte, com as gaivotas em terra.

9.9.08

inícios (18)

- Nunca vi umas pernas iguais às tuas - disse o Borges com eloquência raspando suavemente o indicador na dobra do joelho de laura, dando logo a ideia de que estava habituadíssimo s lidar com pernas. - Apetece-me ficar assim o resto da minha vida a olhar para ti. Nunca vi uma rapariga como tu.
Corações Piegas
Abel Neves

Cotovia

7.9.08

a tosta

A tosta está fria, reclamou. A empregada encostou o dedo indicador à tosta e confirmou: "Está, sim".

3.9.08

os facalhões

Ontem entrei num estabelecimento comercial e apanhei na caixa o seguinte monólogo:

"Um amigo meu, que tem um restaurante, um dia foram lá comer dois tipos e chegaram ao fim e disseram que não tinham dinheiro para pagar. Ele não fez mais nada: pôs os cozinheiros à porta, cada qual com o seu facalhão, e depois, um a um, levou os tipos p'ra um canto e pumba, pumba, deitou-lhes o nariz abaixo; os tipos não podiam fugir, que o meu amigo pôs logo os cozinheiros à porta com uns facalhões deste tamanho; mas não se ficou por aqui: depois, mando-os despir e olé, rua com eles. Nuzinhos no olho da rua, que é para aprenderem. Trigo limpo, farinha amparo. Uma pessoa trata-os bem e eles portam-se mal."

Não sei o que mais me chocou: se os factos descritos, se a circunstância do narrador ser alguém com alguma instrução formal. Não consegui calar-me. Aliás, por altura dos facalhões já me estavam a dar uns calores. A primeira coisa que me veio à cabeça foram os princípios do direito penal moderno. Mas também não consegui articulá-los. Limitei-me a responder como uma varina ilustrada.

Agora uma coisa não posso deixar de confessar: achei graça àquilo dos facalhões.

2.9.08

bica atribulada

Pegou no cós das calças e puxou-as para cima, virou-se e eu li estampado no polo www ponto continente ponto pt; recuou e foi bater com o braço no balcão. Por causa disso derrubou um pires que se partiu no chão como a maça de Newton.

1.9.08

aliança

Passei na esplanada e de relance vi o Puma Branca e a mão do Puma Branca pousada na mesa verde. Segurava um fino com a tal mão que era a esquerda e onde brilhava o ouro do compromisso, uma aliança. Nunca tinha reparado, e também nunca supus. O Puma Branca casou-se ?

31.8.08

Amor Sem

Amor sem esperança, como quando o jovem apanhador de pássaros
tirou rapidamente o seu chapéu alto à filha do Fidalgo,
E assim deixou que as cotovias aprisionadas fugissem e voassem,
Cantando em volta da cabeça dela, enquanto passava a cavalo.

Roberto Graves
(1895-1985)
Trad.: Cecília Rego Pinheiro

22.8.08

"O Meu Pai"

Ontem terminei a rodagem de "O Meu Pai", um filme da MGN, realizado por Joaquim Leitão, com quem, mais uma vez, foi um prazer trabalhar.
À noite houve uma festa no MusicBox. Um pouco cansados, um pouco nostálgicos já, como costuma acontecer no final das rodagens. Começámos na manhã de 7 de Julho, no Estádio Pina Manique e acabámos em Belas, faltavam 5 para as 6, no Aqueduto das Águas Livres. Assim foi durante 7 semanas, ora aqui, ora ali: Jamor, Damaia, Massamá, Oeiras, Estoril, Caxias, Cova da Moura, Alcântara e outras paragens, nem sempre reconhecíveis nas 35 fotografias, uma por dia, que tirei e publiquei.
Agora paro uns dias. E recomeço. Não sei bem o quê. Mais uma vez a coisa não me correu bem, mesmo nada bem, no concurso das primeiras obras. Ano após ano há sempre uma catrefada de projectos que o júri julga melhores do que os meus. Desisti de perceber quais, porquê, em quê, etc. Etc são todas as outras armadilhas que nos incendeiam. Mas também vejo os filmes, os que são mostrados, é claro. Já me aconteceu ser uma das três pessoas na sessão e isso mata-me. Mas também vou ter de morrer de alguma coisa. Morrerei sem perceber nada, para resumir. Também já faltou mais. Amanhã vou atravessar o Alentejo e, se isso não me chega, por momentos deixar-me-á feliz.

DSCN5012© fatima ribeiro2008DSCN5012©fatima ribeiro2008

19.8.08

dia (33)_ 20:20 _ lago

DSCN4816© fatima ribeiro2008

18.8.08

16.8.08

declarações não-electrónicas (3)

'Nunca faço fora de casa'.

15.8.08

14.8.08

13.8.08

12.8.08

10.8.08

Jimmy

Pela primeira vez, fiz risotto. Convidei Castafiori. Achou delicioso. Só que eu tinha-me esquecido duma coisa. Ela não perdoou. Disse: "Não pôs parmesão." Pois não, eu sei, quando dei por isso já estava deitada no sofá a ver os jogos olímpicos, não estive para descer até ao pingo doce, sabe como é, dia de folga. Castafiori não se comoveu e rematou: "O Jimmy põe sempre parmesão". Ah, claro, o Jimmy, pensei. É assim a vida de uma jovem cozinheira de risotto, ser comparada a Jamie Oliver. Para a próxima não a convido. Ainda vou pensar.

8.8.08

3.8.08

inícios (17)

Então, eu estava ali.

Rudolfo
Olga Gonçalves

edições rolim

1.8.08

30.7.08

29.7.08

26.7.08

no sinal

Lá estava ele do lado oposto da passadeira. Eu olhei-o da cabeça aos pés. Só para confirmar que a tradição ainda é o que era. Mas, é claro, o Puma Branca não estava sozinho. O Puma Branca nunca está sozinho.

Ora falava para a direita onde o comerciante chinês ajustava o mp3 aos ouvidos, ora dava um caldinho na cabeça do puto loiro, de calções e toalha ao ombro, pronto para desafiar o Oceano dali a hora e meia na Caparica. De manhã é que se começa o dia, parecia ser o pensamento que unia toda a rua. Havia no ar um cheiro a maresia, que é o género de cheiro que a palavra melhora, penso sempre. Pouco passava das oito da manhã. Há quem ache muito cedo para pensar.

Do lado de cá, vejo o chinês a decidir-se e tirar a porcaria do auricular. O puto ri-se e olha para o Puma. O Puma verifica os óculos de sol pendulados na gola da t-shirt à cava. O puto leva mais um caldinho. E explica-se. Deve-lhe estar a explicar que se rira do chinês, não dele, Puma, Puma Branca para mim, cujo nome civil desconheço em absoluto. Desvio o olhar para um autocarro. O autocarro abranda. Não por causa do meu olhar, mas por causa do sinal amarelo, concluo. Olho para o lado.

Ainda estava a olhar com cara de má para a romena que me pôs uma mão no ombro para pedir dinheiro quando o sinal abriu. Segundos depois, cruzavamo-nos todos na rua da maresia.

25.7.08